42 contos, do nascer da terra e de muitas outras tantas coisas. Do acordar da criança que (ainda) existe em cada um. Alguma de nós lembram-se de quando lemos um conto do sobre a forma como Mia Couto falava com as palavras e como, tão bem, estas se aninhavam na sua escrita como só aí pertencessem. Ler Mia Couto é uma constante brincadeira dos sentidos e das próprias palavras, lembrando-nos que a língua brinca consigo mesma e está sempre pronta a longos e mais altos voos.
Ler
Contos do Nascer da Terra foi como estar sentada ao colo de um avô (ou avó) e ouvir histórias onde o real e o imaginário vivem de mãos dadas. Onde este último se mostra como se da realidade se tratasse, no qual nos encontramos mais. E no final da última história, apetece mesmo dizer baixinho "
Oh...só mais uma...!".
« Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela a intimidade da nossa morada terrestre.Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra. »
« Estrangeiro é o lugar onde não se espera ninguém. »
[...]
Era uma avezita que sonhava em seu poleirinho. Olhava o luar e fazia subir fantasias pelo céu. Seu sonho se imensidava:
- Hei-de pousar lá, na lua.
Os outros lhe chamavam à térrea realidade. Mas o passarinho devaneava, insistonto: vou subir lá, mais acima que os firmamentos. Seus colegas de galho se riram: aquilo não passava de menineira. Todos sabiam: não havia voo que bastasse para vencer aquela distância. Mas o passarinho sonhador não se compadecia. Ele queria luarar-se. Pelo que o tudo ficava nada.
Certa noite, de lua inteira, ele se lançou nos céus, cheio de sonho. E voou, voou, voou. Perdeu conta do tempo. Em certo momento ele não sabia se subia, se tombava. Seus sentidos se enrolaram uns nos outros. Desmaiou? Ou sonhou que sonhava? Certo é que seu corpo foi sacudido pelo embate de um outro corpo.
E pousou naquela terra da lua, imensa savana pétrea. A ave contemplou aquela extensão de luz e ficou esperando a noite para adormecer. Mas noite nenhuma chegou. Na lua não faz dia nem noite. É sempre luz. E o pássaro cansado de sua vigília quis voltar à terra. Bateu as asas mas não viu seu corpo se suspender. As asas se tinham convertido em luar. Com o bicou desalisou as penas. Mas penas já nem eram: agora, simples reflexos, rebrilhos de um sol coado. O pássaro lançou seu grito, esses que deflagrava antes de se erguer nos céus. Mas sua voz ficou na intenção. A ave estava emudecida. Porque na lua o céu é quase pouco. E sem céu não existe canto.
Triste, ela chorou. Mas as lágrimas não escorreram. Ficaram pedrinhas na berma da pálpebra, cristais de prata. A avezita estava cativa da lua, aprisionada em seu próprio sonho. Foi então que ela escutou uma voz feita de ecos. Era a própria carne da lua falando:
- Eu sonhei que tu vinhas cantar-me.
- E porquê me sonhaste?
- Porque aqui não há voz vivente.
- Eu também sonhei que haveria de pousar em ti.
- Eu sei. Agora vais cantar em luar. Eu sonhei assim e nenhum sonho é mais forte que o meu.
É assim que ainda hoje se vê, lá na prata da lua, a pupila estrelinhada do passarinho sonhador.
[...]